“Perdi tudo. Sou uma morta-viva.” Veja relatos de franqueados da Cacau Show

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São muitas as histórias parecidas. E elas começam com o encantamento, com a “magia” da maior franquia de chocolates do país, a expectativa de um bom negócio, a empolgação com a realização de um sonho.

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Até que chegam as primeiras cobranças, taxas e multas que não haviam sido mencionadas lá no início. Aditamentos do contrato, novos preços pelos produtos. Para continuarem funcionando, os franqueados encomendam mais produtos, na expectativa de vender mais e ter lucro. Surgem dívidas impagáveis com a franqueadora, avalizadas com bens como casas e carros do franqueados. É quando começa o pesadelo.

A coluna ouviu relatos de dezenas de franqueados. A maioria opta pelo anonimato por conta do medo. Além das retaliações, eles devem para a Cacau Show. Não conseguem sair sem assumir dívidas mirabolantes ou abrirem mão dos bens que foram dados como garantia. O contrato, ainda, prevê a interferência da Cacau Show na venda das lojas falidas, avaliando os compradores que passam a ser, também, franqueados da rede.

Dona Irene Angelis, ex-franqueada há quase uma década, vê um ciclo. “A sensação que eu tenho é que quanto mais franqueado quebrar, mais loja ele vai repassar, vai ganhar taxa de franquia, vai ganhar juros. Virou uma indústria. E ele lucra com tudo. Ficou bilionário deixando um rastro de pessoas quebradas”, contou ela que chegou a ter seis lojas da rede.

“É um rastro de gente doente, gente que perdeu a casa, que não consegue dormir, gente que não dorme, gente com problemas psicológicos”, completa. Dona Irene conta que ficou doente, desenvolveu síndrome do pânico e insuficiência cardíaca. Perdeu R$ 3 milhões.

“Quando você entra, quando você assina os contratos, é um mar de rosas. Depois, o contrato vai mudando, vai fazendo aditamento. E você já está amarrado, não tem como pular fora. Não tem essa de não tá bom, sai. Você já colocou o seu dinheiro”, relatou.

“Vai benzer”

Quando o mundo mágico oferecido aos franqueados começa a ruir, muitos procuram ajuda, mas, ao invés de planos de negócios, apoio ou qualquer ajuda realmente útil, escutam discursos motivacionais. Uma franqueada conta que procurou a consultora que atendia a loja e escutou que “precisava se benzer”. “Ela insinuou que era só comigo”, lembra.

A franqueada conta que procurou cursos de formação antes de realizar o sonho de montar uma loja da Cacau Show. Peguei minhas economias, investi no sonho de ter uma loja. E, depois de três anos trabalhando feito louca, sem folga, sem férias, sem passar Natal nem Páscoa com a minha família, saí cheia de dívidas, muito abalada emocional e psicologicamente”, relata.

“Morta-viva”

“Perdi a vontade de viver, me sinto uma morta-viva”, conta uma franqueada que ainda tenta se desfazer da loja montada por ela. “Sonhei por muito tempo, envolvi toda a minha família, todo mundo ajudou. Quando as coisas começaram a dar errado, eu não aceitei, insisti, achei que me dedicando mais eu viraria o jogo”, conta.

“Eu sentia que o problema era eu, já que via tantos casos de sucesso. Fui ficando doente, e me endividando”, lembra. Ela conta ter uma dívida de R$ 750 mil e diz não saber como irá quitá-la. “Não sei como reagir, sinto medo e vergonha.”

Enchente

A comoção em todo o país por conta das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024 não fez a Cacau Show mudar qualquer regra ou cobrança. Após ver sua loja destruída, uma franqueada procurou ajuda e recebeu cobranças.

“A água foi até o teto. Montanhas de chocolates, móveis, eletrônicos, eletrodomésticos, louças. Tudo foi pela sarjeta”, conta. “Ao invés de qualquer apoio, recebi ligações de consultores questionando o motivo da loja estar fechada, sem vendas.”

Ela precisou pagar pelos produtos destruídos. “A pior parte foi a cobrança de toda a mercadoria perdida, com royalties, taxas. Não isentaram o pagamento de nada, nem um desconto”, conta. Ao tentar sair, ela pediu ajuda novamente, tentou negociar a dívida. Ouviu outro não.

“Essa franquia é desumana, fora as perdas financeiras, tem a perda da saúde mental e física.” “Pra mim é praticamente uma pirâmide, uma organização criminosa, contam sempre com o fluxo de novos franqueados ingressando na rede. O produto e o cuidado com ele são o que menos importa. O negócio é cobrar, taxas e mais taxas, multas… e assim eles vão extorquindo os desavisados. E por precisarem deste fluxo de gente nova entrando, pregam a cultura do medo, do silêncio, da mordaça, ninguém pode falar mal, ir contra eles, para não contaminar os novos”, afirmou.

Seita

A coluna mostrou que franqueados da Cacau Show relatam o clima de “seita” dentro da maior rede de franquias do Brasil, com punições para quem questiona as normas e práticas da empresa. Quem comanda boa parte dos momentos devocionais é Alexandre Tadeu da Costa, conhecido como Alê Costa, fundador e CEO da Cacau Show – que hoje conta com mais de 4 mil unidades espalhadas em todo o país.

A realidade de parte deles, no entanto, é bem diferente da apresentada por Alê Costa nas redes sociais e em entrevistas em programas especializados de negócios. Franqueados relatam, por exemplo, que, ao reclamarem de problemas, como cobranças ou mudanças no valor dos produtos, passaram a ser perseguidos. Uma das retaliações era a disponibilização de chocolates com validade prestes a expirar, bem como produtos encalhados, com pouca saída, para venda. Essa situação, muitas vezes, inviabiliza o funcionamento das franquias e leva os empresários a fecharem as portas.

“É inequívoco que a política interna da demandada [Cacau Show] afronta o princípio constitucional da liberdade profissional, porquanto, a restrição de crédito para fornecimento exclusivo de produtos, instrumento essencial da atividade econômica, sob a alegação de existência de litígios judiciais entre franqueado e franqueadora, não está amparada em motivo idôneo e constitui mero revanchismo, uso arbitrário das próprias razões por via transversa, cuja finalidade não é outra senão inibir o legítimo direito constitucional de ação dos demandantes [franqueados], o que também viola o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição”, apontou o juiz Julio Roberto dos Reis.

Insatisfeitos, franqueados criaram um perfil em uma rede social para compartilhar relatos. A página foi batizada de “Doce Amargura”. A responsável, que ainda é franqueada, com medo de novas retaliações, optou por um pseudônimo. Ela, no entanto, foi surpreendida por uma visita do vice-presidente da Cacau Show, Túlio Freitas. A loja dela, no interior de São Paulo, fica a mais de 600 km da sede da empresa. Segundo ela, o vice-presidente a perguntou “o que era preciso” para que ela parasse. Agora, ela tenta, judicialmente, rescindir o contrato com a Cacau Show.

Após a publicação do texto, a Cacau Show afirmou, por meio de nota, que “não reconhece as alegações apresentadas pelo perfil Doce Amargura em redes sociais. “Somos uma marca construída com base na confiança mútua, no respeito e na conexão genuína com nossos franqueados”, diz o comunicado.

“Cada experiência é única e pessoal. Prezamos por relações próximas, transparentes e sempre pautadas pelo diálogo — pilares que sustentam nosso crescimento conjunto e tornam possível a construção de uma jornada empreendedora repleta de conquistas e momentos especiais.”

O texto também afirma que “o diretor comercial, Túlio Freitas, realiza visitas às lojas como parte de suas atribuições, com o objetivo de fortalecer o relacionamento com os franqueados e entender as necessidades do negócio”. “Essas visitas são realizadas de forma profissional e não têm qualquer relação com o perfil mencionado.”

“Não compactuamos com qualquer conduta que contrarie esses valores. Seguimos firmes em nosso propósito: vivemos para, juntos, tocar a vida das pessoas, compartilhando momentos especiais”, encerra a nota.