Neste 2025 recém-começado, no qual a polícia do pensamento continua a vergastar o lombo de quem não partilha das suas virtudes teologais, vou até o Portugal de agosto de 1871 para falar de censura. Ainda pode, acho.
Naquele mês daquele longínquo ano do Senhor, o escritor Eça de Queiroz, que escreve cada vez melhor à medida que é cada vez menos lido no Brasil, publicou uma crônica sobre a proibição, pelo governo (português), de um livrinho sobre a Comuna de Paris.
Por que perder tempo me lendo, se você pode ler Eça de Queiroz? A ele, então, mas em trechos, porque o espaço aqui é mais curto do que a vida:
“Publicou-se, há tempo, na Imprensa da Universidade, em Coimbra, um folheto acerca da Comuna.
Bom, ou mau, o folheto foi lido, levemente discutido, totalmente comprado. Era anônimo.
Que há de acontecer? O governo proíbe-lhe a venda! Só aqui há um mundo revolto de pilhéria. O livro é publicado em maio, esgotado em junho e proibido em julho! A única crítica é a gargalhada!”
E, na sequência, Eça de Queiroz dá uma sonora risada literária:
“Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime — nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça! Tu és filha de um dichote que casou com uma pirueta! Tu és clown! Tu és Fajardo! Se viveres, rimos! A oração fúnebre que diremos sobre a tua campa será — Ah! Ah! Ah! A nota que a teu respeito se lançará na história será — Ih! Ih! Ih! A tua recordação entre os homens será — Uh! Uh! Uh! Oh, poder executivo! Oh, Sancho Pança! Oh, pilhéria! Publicado num mês, esgotado no outro, proibido no seguinte! Oh, Pátria! Oh, cambalhota! Oh, Bertoldinho!
Mas corre que o governo, além de proibir o folheto, vai processar o autor do folheto. Aí, alto! Recolhemos a gargalhada, tiramos do cesto o ferro em brasa.
Processado por quê?”
A partir da pergunta retórica, Eça de Queiroz aborda o conteúdo do livrinho sobre a Comuna, expondo o ridículo da censura e do processo com o qual o governo ameaça o autor da obra proibida.
A crônica termina em tom desafiador. Magnificamente desafiador, porque expõe a arrogância de quem se acha no direito de ser censor:
“Pois há alguma lei que nos obrigue a amar São Francisco de Sales e a desprezar Tibério?! Pois a opinião impõe-se como as condutas da Câmara Municipal?! Pois haverá cartilha para as nossa apreciações históricas?
O governo português pondo a sua tosca mão sobre o pensamento! Oh, pirueta, dá-lhe tu a recompensa!”
Na ironia de Eça de Queiroz, a recompensa da pirueta é o tombo, no mais das vezes de uma comicidade igualmente dolorida para quem o sofre. Estou só fazendo interpretação de texto, por favor, que ninguém tome como sugestão.
Sobre o escritor português, o crítico brasileiro Franklin de Oliveira, destaque de uma época na qual a imprensa nacional ainda contava com críticos, escreveu que o verdadeiro terremoto que abalou Lisboa não foi o de 1755, mas foi outro, “incruento, embora muito mais exigente nas suas imposições inovadoras. Chamou-se Eça de Queiroz”. Faltou-nos um no século XIX, no século XX e, agora, no século XXI da nova polícia do pensamento.